Imaro por Charles R. Saunders

d12 de Assis
6 min readFeb 16, 2021

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Capa da primeira edição de 1981, arte de Ken Kelly.

“Eu parto… mas deixo um guerreiro para trás.” — Katisa

Movido pela raiva de como a África e os negros eram representados na fantasia e ficção científica dos anos 1970, Charles R. Saunders criou Nyumbani, sua própria versão do continente africano. O escritor estadunidense é responsável pelo Sword and Soul, um sub-genero do Sword and Sorcery, sendo portanto também um dos precursores do Afro-futurismo. Suas histórias são repletas de ação, criaturas fantásticas e magia, em um cenário diferente do que estamos acostumados.

Seu primeiro livro, Imaro, reúne contos que saíram antes em fanzines no final dos anos 1970. Imaro também é o nome do personagem principal, e essa é a primeira quebra de paradigma do autor. A África era, até então, um local misterioso que os heróis europeus iam desbravar, como podemos ver em Minas do Rei Salomão ou na série Tarzan, mas agora a história era contada do ponto de vista dos seus habitantes, em um cenário complexo com inúmeros terrenos (como savana, selva, deserto, montanha) e ricas culturas (como tribos de guerreiros nômades, comerciantes fluviais, impérios belicosos).

Onde caminham os Ilyassai,
os Ngatun (leões) rugem baixinho
.
– provérbio tamburureano

Edição de 2006, arte de Vince Evans.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira, Os Illyassai, somos apresentados a esta feroz e orgulhosa tribo da savana tamburureana. Conhecemos Katisa que abandona a tribo para escapar do casamento forçado com Chitendu, o feiticeiro e xamã do Deus das Lanças Ajunge. Ela volta três anos depois, com um filho no colo, para desmascarar Chitendu como um serviçal dos Mashataan, os Deuses Demoníacos. Sua ajuda para banir o feiticeiro é bem recebida, mas ao engravidar de um forasteiro, Katisa viola as tradições da tribo, um crime punido com a morte. Ela consegue transformar sua punição em exílio e faz um acordo para que seu filho Imaro fique para trás e seja iniciado no mafundishu-ya-muran, o treinamento nas artes da caça e da guerra.

O livro não está disponível em português, mas apesar do inglês não ser complicado, como podem ver no parágrafo acima, são inúmeras palavras e expressões novas, e alguns nomes próprios incomuns, mas nada que atrapalhe realmente a leitura já que existe um glossário no final.

O idioma dos Ilyassai
É a fala da lança.
– dito tamburureano

Capa da sequência de 1984, arte de James Gurney.

Continuando a história, acompanhamos a infância e adolescência de Imaro em sua busca por aceitação em uma tribo que o estigmatiza por ser filho-de-nenhum-pai. Ele enfrenta com um misto de orgulho e teimosia o ambiente hostil da savana, tribos rivais, feiticeiros grotescos com três corações, exércitos de mortos-vivos e principalmente o preconceito dos seus pares. Aos 18 anos, ele passa pelo rito da maioridade, matar sozinho um temível Ngatun, um leão, mas os feiticeiros de Naama têm outros planos e não podem deixar que Imaro tenha seu momento de glória…

Na segunda parte, Os Haramia, Imaro percorre Nyumbani e acaba se juntando aos Mtumwe, um pacífico povo dos rios, com uma cultura completamente diferente das tribos da savana, e aqui o livro brilha com descrições detalhadas dos seus costumes, vestuários e tradições, completamente diferentes dos Illyassai.

Imaro eventualmente acaba sendo capturado por um bando de bandidos conhecidos como os Haramia, e, como era de se esperar, acaba por liderá-los, forçando os reinos rivais de Azania e Zenj a se unir para enfrentá-lo. Ele conhece o amor e a traição, e o livro termina com um gancho para a continuação.

Terceiro livro de 1985, arte de James Gurney.

Mais dois livros da série foram lançados nos anos 1980: Imaro, The Quest for Cush e The Trail of Bohu. Infelizmente estes não alcançaram o grande público e o autor acabou abandonando sua criação por vários anos, se concentrando no trabalho como jornalista. Nos anos 2000, porém, os livros foram republicados e um quarto volume foi adicionado à série, The Naama War, gerando um novo interesse pelo personagem. É importante ressaltar que o autor revisou sua obra nessa republicação, ele trocou um dos contos se assemelhava demais com o genocídio em Ruanda de 1994, então a versão disponível atualmente (que foi a que eu li), é um pouco diferente da lançada nos anos 1980. Infelizmente Sanders faleceu em 2020, mas seu legado continua vivo.

Assim como Conan ou John Carter de Marte, Imaro é um ser extraordinário, ele é mais forte e ágil que seus pares, um líder nato e dotado de uma mente prodigiosa, mas também é um personagem complexo, que tem dúvidas apesar da teimosa, e se transforma ao longo da história em sua busca por aceitação.

Coletânea de 1975, arte de George Barr. Além de Saunders, contém 5 autores do apêndice N.

Saunders escreveu em fanzines e apareceu em algumas coletâneas nos anos 1970, como The Year’s Best Fantasy de Lin Carter, mas infelizmente seu primeiro livro, Imaro, só saiu em 1981 e portanto não podia constar no Apêndice N de Gary Gygax, onde ele certamente seria um dos destaques. Não consigo deixar de imaginar como o mundo dos jogos teria sido diferente se Imaro figurasse entre suas fontes primarias de referência, que oportunidade perdida! Os livros mais antigos de D&D geralmente acompanhavam a visão limitada (e preconceituosa) difundida no cinema da época e em parte da literatura do Apêndice N. Apesar dos jogos geralmente partirem de uma cultura medieval fantástica, outras regiões, como a Arábia das Mil e uma Noites repleta de gênios e odaliscas e o Oriente com seus ninjas e geixas, apareciam volta e meia, e de uma forma positiva, ainda que simplista, enquanto que, com exceção do Egito Antigo, as culturas africanas eram ignoradas ou mesmo representadas como um emaranhado de bárbaros.

Folheando minhas velhas revistas encontrei uma carta bem interessante na Dragon Magazine #176 (1991), onde um leitor reclamava justamente de como um vasto continente com uma cultura rica de 6.000 anos era praticamente ignorado enquanto suplementos sobre vikings e astecas eram publicados. A resposta é bem decepcionante (mas esperada), eles diziam que não havia planos para livros de AD&D baseados em culturas africanas e meio que se justifivam citando os 5 (cinco!) artigos que saíram na revista, e que em um suplemento de Hollow World sobre um reino baseado justamente no Egito é mencionado que os vizinhos deles se parecem com “ancestrais reinos negros do mundo real”…

Artigo de Saunders que saiu na Dragon Magazine #122.

Dois dos artigos citados foram justamente escritos por Saunders, na Dragon Magazine #122 (1987) saiu Out of Africa retratando inúmeras criaturas do folclore africano, com as estatísticas de jogo criadas por Roger E. Moore. Ele também publicou o conto Mzee sobre a infância de Imaro na edição #86 (1984), pena que essa parceria não tenha gerado outros frutos. Consigo imaginar um cenário de campanha similar à Al-Qadim, Maztica ou Kara-tur, com a participação direta de Saunders, em um universo alternativo com uma TSR de mente um pouco mais aberta.

Por fim, Imaro tem vários méritos e merece ser lido por qualquer fã do gênero, mas vira leitura obrigatória para aqueles que desejam criar sua própria Nyumbani em seu cenário de campanha.

Nota final: Em 2020, Kalymba, de Daniel Pirraça, “um RPG de ação e aventura épica inspirado nas culturas e mitologias do continente africano”, alcançou surpreendentes R$ 110.685,00 no financiamento coletivo. Parece perfeito para emular as aventuras de Imaro e prova que existe interesse nesse tipo de cenário. Um fast play gratuito está disponível na página do projeto.

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Written by d12 de Assis

Um espaço para falar de RPG e Literatura, principalmente sobre os livros presentes no saudoso Apêndice N, lista de livros recomendados por Gygax no AD&D.

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