Kothar — Barbarian Swordman por Gardner F. Fox
Gardner F. Fox foi um importante roteirista de quadrinhos da era de ouro e prata dos quadrinhos, ele criou alguns personagens clássicos como Flash e Gavião Negro, assim como a Sociedade da Justiça (que depois deu origem à Liga da Justiça). Quando passou pelo Batman, introduziu alguns elementos como o batrangue e o cinto de utilidades. Ele também escreveu para a EC Comics que também é citada na introdução do Apêndice N. Ainda nos quadrinhos, ele provavelmente criou o primeiro pastiche de Conan chamado Crom the Barbarian, ainda em 1950, antes de Sprague de Camp e Frank Frazetta resgatarem o personagem da obscuridade. No final dos anos 1960, ele saiu da DC por discordar da política da empresa de não dar plano de saúde para os funcionários sêniores e passou a a escrever romances, incluindo alguns de fantasia que acabaram influenciando Gary Gygax na criação do RPG.
Em 1969 chega às livrarias Kothar — Barbarian Swordman (Khotar — o espadachim bárbaro numa tradução livre, ou A espada das mil e uma mortes na tradução da Cedibra), um livro com três contos de Sword and Sorcery em que o personagem título é apresentado como um guerreiro loiro musculoso que enfrenta feiticeiras e monstros em um mundo fantástico.
O livro começa com uma introdução psedo-erudita de um suposto Donald Maclvers PHD que cita um filósofo alemão para explicar por que Kothar é um personagem que deve ser levado a sério. Ele menciona inclusive que a presença de um mapa tão detalhado torna o personagem ainda mais crível (não existe mapa no livro!). Deve ter sido o próprio autor que escreveu essa abertura para caçoar das introduções pomposas de Sprague de Camp e Lin Carter nos livros de fantasia que editavam. O livro é todo nesse tom, ele parece se levar muito sério mas ao mesmo tempo está fazendo troça, em muitas partes ele parece estar fazendo uma paródia do famoso personagem de Robert E. Howard mas em outras soa mais como uma homenagem.
A espada do feiticeiro
No primeiro conto The Sword of the Sorcerer, conhecemos Kothar o Cumberiano (não confundir com um tal Cimeriano), mercenário a serviço da Rainha Elfa (sic), que perde uma batalha e precisa fugir das forças inimigas. Ele acaba se refugiando em uma antiga catacumba onde se depara com uma criatura saída dos pesadelos, o lich Afgorkon. Ele se revela um aliado de Elfa e dá ao bárbaro a espada mágica Frostfire, que apesar dos grandes poderes, carrega uma maldição que impede seu portador de acumular qualquer riqueza. Aqui vale um trecho sobre a arma que ilustra bem o que disse antes sobre o texto estar sempre no limiar da parodia, ele está brincando com os leitores ou essa descrição é realmente épica?
“Frostfire foi forjada na gosma primordial por diabos que convoquei 500 anos atrás. Foi gerada de um metal caído dos céus, mergulhada nas entranhas derretidas do mundo, esfriada na neve de uma montanha são alta que nada além de uma sílfide — um espírito alado do ar — podia carregá-la até lá. Ela pode perfurar qualquer armadura, qualquer elmo. Ela pode ser portada apenas por um homem que não possuir riqueza.” (tradução livre)
Ele então realiza algumas missões para derrotar a bruxa Red Lori que é a força por trás dos exércitos inimigos, e acaba ganhando sua inimizade eterna. A bruxa o amaldiçoa e a partir daí, o bárbaro (e os leitores) fica sempre na dúvida se ela está efetivamente trabalhando para destruí-lo ou se é tudo fruto de sua imaginação.
O tesouro no labirinto
O livro continua com The Treasure in the Layrinth, onde o bárbaro é contratado para recuperar uma riqueza incalculável no centro de um labirinto repleto de monstros e armadilhas criado por um necromante. É praticamente uma aventura de RPG romanceada, a própria descrição do local se parece com as que seriam usadas pelo mestre de jogo para descrever essas situações. Veja um exemplo:
“O corredor se transforma em um túnel menor. Isso leva, depois de 20 pés, a uma bifurcação no caminho. Khotar escolhe o túnel da direito e avança rápido, ansioso por alguma atividade. Uma sala maior abre para sua visão” (tradução livre)
Como era de se esperar, no caminho ele resgata uma bela donzela de uma criatura aracnídea que por sua vez o ajuda em sua demanda. Mas o tesouro talvez não seja o que seu contratante esperava.
A mulher na mata das bruxas
No último conto, The Woman in the Witch-wood, Khotar encontra uma encantadora mulher (consegue ver um padrão aqui?) que conta uma história triste e Khotar não pode ignorar seus apelos. Ela é Alaine, antiga nobre local, que teve suas terras tomadas por um poderoso feiticeiro e uma maldição a prende nos arredores de uma torre em ruinas. Ele precisa enganar mortos vivos para entrar na fortaleza de um mago supremo e acabar com seu reinado de terror.
O vilão dessa vez é o Barão Gorfroi que com a fortuna do castelo contrata “feiticeiros e bruxos de abismos interestelares e intergalácticos” para ensinar magias e encantos e justamente esses patronos difíceis de agradar que podem selar seu destino.
Por fim, é um livro divertido, escrito às vezes de forma pretenciosa, com uma série de termos arcaicos, mas que ao mesmo tempo não se leva a sério (ou se leva a sério demais, dependendo de como você encara as escolhas do autor).
Como ler Khotar
O livros da série Khotar chegaram a sair em português pela editora Cedibra nos anos 1970 na coleção Super Fantasia e são extremamente difíceis de ser encontrados. Para quem sabe inglês, estão todos disponíveis em formato digital.
Influência ao D&D
No Apêndice são citadas diretamente as duas séries de fantasia do autor (Khotar e Kyrik), além de recomendar de forma geral seus outros livros. Gardner chegou a escrever diversos contos na Dragon Magazine (começando no longínquo número 2) então era uma figura carimbada que estava próximo da TSR no seu início. Em 1977, por exemplo, a empresa lança o jogo de tabuleiro Warlocks & Warriors com design dele.
O conceito de item amaldiçoado pode ter puxado alguma coisa da espada Frostfire, e além disso um verdadeiro bestiário é citado ao longo do livro que pode ter inspirado algumas entradas do Monster Manual, como goblin e hobgob, esqueleto, bogarth, súcubo, gibbering ghoul (talvez gerando o gibbering mouther e o ghoul), minokar, múmia e lamia.
Tirando as especulações de lado, uma coisa definitivamente veio daqui que é o conceito do morto-vivo lich, um conjurador extremante poderoso que consegue se manter “vivo” através da força de sua magia. Lich é uma palavra arcaica para corpo em inglês, e o autor a usa aqui como sinônimo de morto-vivo. Essa criatura há muito saiu dos manuais de RPG para virar um arquétipo geral de fantasia. A animação Hora de aventura, por exemplo, tem como um dos vilões o “Lich”, o mesmo acontece na franquia de vídeo games Warcraft, aliais, se você procurar pelo termo na Amazon pelo termo vai encontrar inúmeros livros e quadrinhos, muitos com lich no próprio título. Isso é uma medida de como o D&D influenciou a cultura pop: lich aparece em um livro obscuro, é transformado em monstro por Gygax e então transborda para outras mídias como se fosse um arquétipo clássico de morto-vivo que sempre existiu.
- Agradecimentos à Quim Thrussel por complementar a informação do Boardgame que tinha escapado do meu radar. Ele escreveu um belo post sobre Crom the barbarian que vale ser lido.