O que é o Apêndice N?

d12 de Assis
5 min readJul 5, 2021
Capa do Livro do Mestre do AD&D 1a edição de 1979. Não chegou a ser lançado no Brasil.

Para explicar o que é o Apêndice N, é preciso voltar às origens do jogo. Publicado em 1974, o primeiro RPG Dungeons and Dragons era voltado inicialmente para jogadores de wargame mas aproveitava também a onda de interesse pelo gênero de fantasia trazida pelo lançamento das edições econômicas de O Senhor dos Anéis de JRR Tolkien e dos livros de Conan de Robert E. Howard nos anos 1960. Essas duas raízes, literária e lúdica, são fundamentais para compreender como o RPG foi formado e a sua relação com os livros é de especial interesse para mim.

Mas é importante frisar que Gygax não era um oportunista surfando na popularidade repentina do gênero de fantasia, mas sim um verdadeiro especialista em literatura fantástica, sendo leitor de revistas pulp desde criança. Era um nerd supremo, sendo responsável pela criação da Gen Con (até hoje a maior convenção de jogos do mundo) e coordenador de uma organização que recriava o mundo medieval através dos jogos.

Introdução do “Suplemento de Fantasia” do Chainmail, notem que ele cita Tolkien, Howards e “outros autores de fantasia”.
Escondido no meio do texto do Chainmail, uma referência ao livro Three Hearts and Three Lions, que foi uma das grandes influências ao D&D.

Ele enxergou um vácuo no cenário comercial de wargames, existiam pouquíssimos jogos ambientados na idade média, e criou então um jogo de guerra chamado Chainmail para emular combates medievais de miniatura. O jogo incluía um pequeno apêndice com regras para inserir elementos fantásticos e citava nominalmente Tolkien e Howard (assim como Poul Anderson na parte que fala dos trolls). Podemos ver que ele nunca escondeu suas influências, mas sim as exibia com orgulho. O Chainmail foi usado por Dave Anderson nos seus jogos experimentais de Blackmoor, e em seguida os dois se reuniram para criar o Dungeons and Dragons.

Parágrafo final do prefácio do OD&D citando os principais autores que depois iam figurar no Apêndice N.

No prefácio da primeira versão do D&D (hoje conhecida como OD&D) Gygax é taxativo que os wargamers sem imaginação e que não ligassem para determinadas referências literárias simplesmente NÃO gostariam do seu jogo. Ele lista como importantes as aventuras marcianas de Burroughs, a saga de Conan de Howard, as fantasias de Camp & Pratt e Fafhrd e Gray Mouser enfrentando feitiçarias malignas na obra de Fritz Leiber. Não que eu concorde com essa declaração radical, você pode se divertir independentemente de sua bagagem literária, mas só o fato do aviso existir já deixa claro o quanto Gygax valorizava a literatura fantástica e queria que ela fosse mais conhecida.

Quando Gygax revisitou sua criação com o Advanced Dungeons and Dragons, em 1979, inseriu um pequeno texto no Dungeon Masters Guide (Livro do Mestre), entre o Apêndice M — Monstros Conjurados e Apêndice O — Peso de Itens Padrão, chamado Apêndice N — Leitura Inspiracional e Educacional, uma lista com recomendações de autores e livros. Sua criação bebeu de diversas fontes, criando um amalgama único de referências que por sua vez influenciou incontáveis mestres, autores, designers de jogos nas décadas seguintes, e o Apêndice N é uma espécie de mapa do tesouro, quase como uma Pedra Roseta para quem quer decifrar as origens secretas do jogo, de onde vieram as classes, raças, magias, criaturas e até o próprio ambiente de aventura.

Na página 40 do Dungeon Masters Guide, existe essa referência a dois autores citados posterioremente no Apêndice N.

Na última década, esse trecho obscuro de meia coluna foi redescoberto pelos jogadores de todo mundo que se debruçam sobre ele tentando destrinchar seus menores detalhes e eu sou umas dessas pessoas que tem esquadrinhado esse pergaminho antigo e através de resenhas tenho colocado minhas impressões e descobertas. Essa jornada está apenas começando.

Segue o Apêndice N numa tradução livre. Eu inclui nomes traduzidos dos livros em itálico quando disponíveis em português.

APÊNDICE N: LEITURA INSPIRACIONAL E EDUCACIONAL

Dungeon Masters Guide, página 224.

A inspiração de todo trabalho de fantasia que fiz veio diretamente do amor que meu pai demonstrou quando eu era moleque, pois ele gastou muitas horas contando estórias que inventava enquanto contava, estórias de velhos encapuçados capazes de conceder desejos, de anéis mágicos e espadas encantadas, ou de feiticeiros perversos e espadachins destemidos. Então também incontáveis quadrinhos foram consumidos, e os da EC, há muito extinta, certamente tiveram seu impacto. Filmes de ficção científica, fantasia e horror também exerceram uma influência grande. Na verdade todos nós tivemos nossa dose de ajuda quando muito jovens de contos de fadas como os escritos pelos Irmãos Grimm e Andrew Lang. Isso geralmente leva à leitura de livros de mitologia, ao folhear de bestiários e à consulta de compilados de mitos de diversas terras e povos. Sobre tal base que construí meu interesse por fantasia, sendo um ávido leitor de toda literatura de ficção científica e de fantasia desde 1950. Os autores a seguir foram de especial inspiração para mim. Em alguns casos eu cito obras especificas, em outras eu simplesmente recomendo toda sua escrita fantástica. De tais fontes, assim como de qualquer outro texto ou filme imaginativo, você será capaz de extrair os grãos que germinarão em excitantes campanhas. Boa Leitura!

Anderson, Poul: THREE HEARTS AND THREE LIONS; THE HIGH CRUSADE (A grande cruzada); THE BROKEN SWORD (A espada quebrada)
Bellairs, John: THE FACE IN THE FROST
Brackett, Leigh
Brown, Frederic
Burroughs, Edgar Rice: série “Pellucidar”; série Mars; série Venus
Carter, Lin: “World’s End” series
de Camp, L. Sprague: LEST DARKNESS FALL (A luz e as trevas); THE FALLIBLE FIEND; et al
de Camp & Pratt: série “Harold Shea”; THE CARNELIAN CUBE
Derleth, August
Dunsany, Lord
Farmer, P. J.: série “The World of the Tiers”; et al
Fox, Gardner: série “Kothar”; série “Kyrik”; et al
Howard, R. E.: série “Conan”
Lanier, Sterling: HIERO’S JOURNEY
Leiber, Fritz: série “Fafhrd & Gray Mouser”; et al
Lovecraft, H. P.
Merritt, A.: CREEP, SHADOW, CREEP; MOON POOL; DWELLERS IN THE MIRAGE; et al
Moorcock, Michael: STORMBRINGER; STEALER OF SOULS; série “Hawkmoon” series (esp. os primeiros três livros)
Norton, Andre
Offutt, Andrew J.: editor de SWORDS AGAINST DARKNESS III
Pratt, Fletcher: BLUE STAR; et al
Saberhagen, Fred: CHANGELING EARTH; et al
St. Clair, Margaret: THE SHADOW PEOPLE; SIGN OF THE LABRYS
Tolkien, J. R. R.: THE HOBBIT (O Hobbit); “Ring trilogy” (“trilogia do anel”)
Vance, Jack: THE EYES OF THE OVERWORLD; THE DYING EARTH (A agonia da Terra); et al
Weinbaum, Stanley
Wellman, Manley Wade
Williamson, Jack
Zelazny, Roger: JACK OF SHADOWS; série “Amber”; et al

As influências mais imediatas sobre o AD&D foram provavelmente de Camp & Pratt, R. E. Howard, Fritz Leiber, Jack Vance, H. P. Lovecraft, e A. Merritt; mas todos os autores acima, assim como muitos não listados, certamente ajudaram a formar o jogo. Por essa razão, e pelas muitas horas de leitura de entretenimento, eu calorosamente recomento as obras desses ótimos autores.

- E. Gary Gygax, 1979, AD&D Dungeon Masters Guide.

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d12 de Assis

Um espaço para falar de RPG e Literatura, principalmente sobre os livros presentes no saudoso Apêndice N, lista de livros recomendados por Gygax no AD&D.